terça-feira, 27 de agosto de 2013

Mundo Finito #3

Gambá enfurecido - Fonte: Andrew Kantor
#3

Orlando caminha na chuva checando as armadilhas que horas antes havia montado. As duas primeiras estavam vazias. Ao se aproximar da terceira armadilha, a mais afastada de todas, Orlando escuta o estardalhaço característico de um animal aprisionado. Já estava perdendo as esperanças, afinal a chuva forte não favorece os passeios noturnos das prezas que procura. Estava enganado.

Preso, um gambá enfurecido tenta livrar-se do laço que o prende pelo quadril. O animal rosna, mostrando os pequenos dentes afiados enquanto se arrasta pelo chão freneticamente. Orlando aproxima-se com cuidado, já com o cano na mão direita. É necessário fazer com que o animal perca os sentidos com uma ou duas pancadas secas e fortes. Caso demore, o gambá pode arrebentar a corda, roer as fibras ou mesmo atacá-lo, dificultando o trabalho ou mesmo escapando.

Segurando a corda a partir do ponto onde está amarrada no tronco do arbusto, arrasta o animal para perto de si. Com cuidado o faz chegar ao alcance de seu ataque, a soma do comprimento do seu braço com o cano. Faltando apenas poucos centímetros para estar na posição e distância corretas o gambá apavorado volta-se contra ele, vencendo os centímetros que os separam em uma fração de segundos.

Surpreso com o ataque Orlando recua um meio passo mas é obstruído pelo mesmo arbusto onde tinha amarrado a corda da armadilha. Com um salto rápido a criatura alcançou sua mão cravando os dentes profundamente na carne entre o polegar e o indicador. Com um grito contido Orlando larga a corda e com a mão esquerda agarra o animal pelo pescoço. Se o gambá se sacudir ou for puxado, os dentes rasgarão a pele e o dano será muito maior. Ele aperta o pescoço do animal com toda a força sentindo cartilagens estalarem sob seus dedos. Quando a boca se abre e sua mão se livra dos pequenos dentes afiados, Orlando gira a criatura no ar como uma criança que brinca girando uma corda, quebrando seu pescoço instantaneamente.

O gambá está morto e Orlando terá comida esta noite, mas a que preço? Mesmo uma pequena mordida significa uma infecção. Pequena, mas profunda. É necessário limpar o ferimento imediatamente. Poderia usar água da chuva, mas não vê nenhum recipiente limpo o suficiente ao seu redor onde esteja acumulada em abundância. Não há tempo para ferver água, quanto mais rápida for a limpeza, melhores suas chances.

Decide lavar o ferimento com urina. Abre as calças e coloca a mão sob o pênis. Controla o fluxo para a urina sair devagar. Lava os dois lados da mão, que já está vermelha e inchada. Recolhe a corda e o gambá e reinicia a caminhada de volta ao seu abrigo. A chuva segue indiferente, pesada, ao ponto de encharcar suas roupas. Melhor, assim o sangue é lavado e não deve atrair outros predadores. A competição é ferrenha. 

Ao chegar, joga a carcaça pra dentro e, ao entrar, verifica o estado das latas sobre as prateleiras que ainda teimam em se manter fixas à parede. São velhas latas de alimentos, outrora esmaltadas, a ferrugem já as cobre quase que totalmente. Em uma é possível ler as letras "ão". Em outra uma "ç" perdida. Mas uma, caída por detrás das outras, lê-se nitidamente a palavra "arroz". Com a mão esquerda remove a tampa, parcialmente emperrada e verifica o interior. Para sua surpresa a lata está em ótimo estado, vazia - obviamente - mas salvo por alguma poeira, ainda é possível ver o brilho amarelo provocado por seu fogo moribundo no latão.

Rapidamente Orlando alimenta a fogueira com mais madeira e vai até a lona colocada na rua. Mergulha a lata uma vez na água e a sacudindo com força em movimentos circulares. Joga esta água fora e torna a encher a lata até a metade, enquanto a mão direita lateja mandando impulsos de dor para seus dedos e pulso. Dentro do abrigo, coloca a lata sobre as brasas e, da melhor forma possível, puxa os restos do armário com toda a força que lhe resta a fim de bloquear a entrada contra o frio e a chuva que apertam seu castigo sobre o homem molhado. 

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Mundo Finito #2

Prancha para fazer fogo por fricção - Fonte: Campfires and the Arts of Bushcraft


#2

Tomando consciência do tempo que lhe resta, uma lista natural de tarefas se acumula em sua mente forçando as imagens recém avistadas para um canto escuro da memória. Girando a cabeça rapidamente em todas as direções o homem avalia as condições das estruturas mais próximas. Procura o melhor abrigo visível, mas também outras coisas de que necessita. Se demora em uma casa que ainda resiste com duas boas paredes e uma cobertura de telhas de amianto que caiu, vindo a apoiar-se em montes formados pelos escombros do que foi um dia a parede sul. Seus olhos treinados percorrem o trajeto entre ele e o abrigo e a decisão é tomada.

Ele sai da estrada e logo começa a descer a colina pelo lado direito, agora tomando cuidado com as pedras soltas e escombros que lhe negam a facilidade do asfalto rachado. Ao longo do caminho olha para o chão procurando qualquer coisa que lhe possa ser útil. Está com sorte pois logo encontra um pedaço de cano de metal, enferrujado mas forte, em boas condições, que deve economizar algumas horas de trabalho. Coloca o cano em sua velha mochila e segue recolhendo principalmente o que encontra de madeira, gravetos e folhas secas que vai guardando junto ao corpo, entre a roupa e a pele.

Na entrada da gruta formada pelo telhado desmoronado ele deixa cair a madeira que carrega. Saca a faca da bainha com a mão direita e com a esquerda pega o cano na boca da mochila. Afastando-se da entrada, bate nas telhas e aguarda. Após alguns segundos olha para dentro e se depara com um cômodo pequeno com o chão tomado por pedras, tijolos esfarelados e poeira. Ao fundo, frestas abertas entre o telhado e a parede deixam circular um ar tímido, apenas uma sombra do vento que vai ganhando força no entardecer. Não há portas ou janelas nas paredes que restam. Ele estará seguro. 

Arrasta a preciosa lenha para dentro e com as mãos retira as pedras de um canto contra a parede que encara a abertura do abrigo. Enquanto realiza esta tarefa estuda com mais cuidado o interior da casa. Algumas prateleiras velhas ainda se sustentam na parede com latas enferrujadas. Os restos de um móvel qualquer apontam por entre os escombros e o ambiente parece seco. Ele está bastante satisfeito com o lugar.

Deixa cair a mochila das costas e o cantil de couro cru que vem pendurado no ombro e dedica algum tempo a examinar o móvel quase enterrado nos escombros, trata-se de algum tipo de armário. Rapidamente cava ao redor e consegue separar duas portas em bom estado, com madeira seca e leve. Apoia a faca contra as fibras da madeira e bate com o cano de ferro nas costas da lâmina abrindo aos poucos a velha porta em lascas menores. Hoje terá lenha para a noite toda.

Arruma algumas pedras em semicírculo e de dentro da mochila saca um embrulho de couro fino, bem amarrado com algum tipo de fibra natural. Desatando os nós e desenrolando o couro, e uma camada de plástico velho que se escondia por baixo deste, o homem produz uma tábua de madeira amarela marcada no centro por um vinco escuro, chamuscado e um pedaço menor da mesma madeira velha e seca, redondo e comprido como um galho quebrado e sem casca. De dentro da roupa tira algumas folhas secas e barbas-de-bode que amontoa na ponta ta tábua. Ajoelha-se segurando uma extremidade da tábua com a perna e começa a friccionar a madeirinha contra o vinco na tábua vigorosamente.

A tarefa é desempenhada com naturalidade e seriedade. Ele sabe que sua sobrevivência esta noite depende de fogo e na medida em que a fricção se acelera, partículas incandescentes de madeira se desprendem do vinco da tábua, acumulado-se junto às folhas e barbas-de-bode secas, fazendo alguma fumaça que é soprada timidamente para fora. No instante em que vê uma fagulha, o homem sopra gentilmente o montículo aproximando as folhas mais secas até obter uma pequena chama. Acrescenta calmamente mais folhas tomando cuidado para não abafar o fogo até que esteja forte o suficiente para receber gravetos e uma quantidade maior de combustível. Quando está satisfeito, retira e guarda cuidadosamente sua tábua, fecha o círculo de pedras ao redor da pequena fogueira e coloca alguns pedaços de madeira sobre o fogo. Acompanha o crepitar as chamas por alguns segundos e sente-se seguro de que o fogo não deve mais apagar.

Voltando-se para suas coisas permite-se um pequeno gole de água de seu odre improvisado, um cantil costurado a partir da pele inteira de algum animal. Está bastante usado e em muitas partes o pelo se perdeu mostrando um couro velho e esbranquiçado. Na mochila pega um rolo de fibras, cipós finos e secos, e um pedaço de plástico grande cuidadosamente dobrado. Sai de seu abrigo e avalia novamente a posição do sol. Se for rápido poderá aproveitar os últimos minutos de luz para tentar providenciar água e comida para a manhã seguinte.

Dirige-se então para arbustos próximos e, com muito cuidado, observa a poeira em volta. Não demora muito até achar o que procura: pequenas pegadas de algum animal. Provavelmente um gato ou guaxinim. A trilha é bem usada, ou pelo menos é o que a quantidade de pegadas em ambos os sentidos denuncia. O lugar perfeito para uma armadilha. Ele amarra firmemente uma das pontas da corda de fibra no tronco de um arbusto e faz um laço com a outra ponta, deixando-o aberto no que calcula ser a altura da cabeça do animal no meio da trilha. Disfarça o laço com algumas folhas e retoma a tarefa procurando outros dois pontos ao longo da trilha que favoreçam a colocação de outras armadilhas.

Termina o trabalho quando os últimos raios de sol estão desaparecendo, e no mesmo momento em que escuta os primeiros trovões e vislumbra os primeiros raios no horizonte. Nem uma vez sequer parou para observar as impressionantes caixas de pedra crivadas de janelas que havia visto horas antes. Haverá tempo para isso no dia seguinte. É necessário manter o foco, obedecer à disciplina dos sobreviventes. Se é que ainda existem outros. Retorna ao abrigo recolhendo mais lenha que leva imediatamente ao fogo que encontra quase extinto. Após reavivar a fogueira sai mais uma vez para fazer uma pequena barreira de areia nas laterais de uma depressão do terreno, formando uma espécie de bacia natural. Estende a lona plástica sobre a bacia e prende as bordas com pedras pesadas, checa a profundidade e fica satisfeito com a quantidade de água que pode acumular.

Subitamente a chuva chega, e com ela o peso da respiração e do chiado no peito o apertam a ponto de lembrar da dor no corpo a tempo ignorada. É hora de parar. Volta para dentro e, após alimentar a fogueira mais uma vez, começa a limpar uma área suficiente para recostar seu corpo cansado contra a parede. Retira pedras e qualquer coisa que possa ser desconfortável. Alisa o chão com cuidado e arruma suas coisas em um canto. Volta para a mochila e guarda o que sobrou de suas cordas. Retira de lá uma velha caneca de alumínio que enche até a metade com água do cantil. De dentro do casaco retira um pedaço de couro dobrado que por sua vez guarda finas tiras de carne seca. Pega uma e guarda as três restantes. Usando a faca corta as tiras duras e coloca os pequenos pedaços na caneca que aproxima do fogo para que esquente. A esta altura a fogueira já produziu algum carvão e ele escolhe um tição apagado para rabiscar na parede.

Lentamente, letra a letra, o nome Orlando aparece em manchas negras. A caligrafia é infantil, pois sua leitura sempre foi muito melhor do que a escrita, principalmente pela falta de papel. Lembra do dia em que seu pai lhe ensinou a escrever seu nome. Enquanto olha para o nome na parede, seu olhar perde o foco e escuta a voz áspera do homem insistindo para que preste atenção. "Este é seu nome Orlando" ele diz. "É a primeira coisa que deve aprender a escrever". "Mas por que devo aprender a escrever isso se você já sabe meu nome e não existe mais ninguém pra ler, pai", pergunta Orlando, o homem menino. "Para que você nunca se esqueça de quem..." e seu devaneio é bruscamente interrompido pela estridente gritaria de um animal desesperado. Ele leva alguns segundos para perceber onde está. Reconhece o nome na parece e vê a caneca borbulhando já chamuscada perto do fogo. Afasta seu jantar das chamas e apaga o nome da parece com a mão de uma só vez.

Hora de verificar as armadilhas antes que o café da manhã roa sua preciosa corda e escape lhe deixando mais um dia de barriga vazia. As gotas gordas de chuva caem pesadas pesadas em suas costas enquanto Orlando ganha a noite.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Mundo Finito #1

Pripyat, Ucrânia - Foto: Augusto Sala
#1

Um homem caminha por entre folhagens altas. Sob seus pés, um terreno relativamente regular formado por um piso de concreto, com rachaduras aqui e ali de onde brota um mato pouco denso, oferece a possibilidade de avanço fácil. Mas a oferta não é aceita e o homem arrasta os pés, um atrás do outro, como se fossem lastros amarrados às extremidades das pernas. É evidente que não existe um destino claro em sua mente.

Sua respiração, lenta, cadenciada e profunda, faz soar um sibilo característico de doença. Qual ele não sabe precisar. A dor, sempre presente, já foi ignorada faz bastante tempo. De forma que aprendeu a conviver com ela como quem sempre conviveu com a fome, a falta de banho ou o sono assustadiço.

À esquerda e à direita acumulam-se restos de paredes. É um bom indício. Faz alguns dias desde que viu alguma construção e embora as matas ofereçam melhores possibilidades de encontrar água e algo para mastigar, são úmidas e se dorme desabrigado, ao sabor do vento, do frio e principalmente da chuva. É preciso procurar um lugar melhor antes que a desgraçada volte e o chiado no seu peito piore. 

Ao contrário de outros poucos que viu por aí, o último já a muitas mudanças da lua, ele não empurra um carrinho cheio de tralhas, água ou comida. Percebeu com alguma facilidade que isso o deixaria lento e o faria uma presa fácil para os mais fortes, rápidos ou saudáveis. Não. Seus pertences são muito poucos, todos carregados junto ao corpo.

Fazendo um esforço para manter sua concentração, tateou por sob a barba comprida e precocemente grisalha à procura do seu bem mais precioso: a faca que traz em uma bainha de couro, pendurada no pescoço. Toca-lhe o cabo e lembra-se de seu objetivo. Precisa encontrar abrigo, rapidamente.

Olhando para frente, firma o passo deixando para trás o caminhar arrastado e incerto do homem que há alguns instantes parecia completamente perdido. Inclinando ligeiramente o corpo para frente, a fim de adequar seu equilíbrio à mudança de inclinação do terreno na medida em que este se torna íngreme, mantém o ritmo das passadas, agora muito mais firmes. É necessário economizar energia e ele sabe que caminhar grandes distâncias sem se adequar às características do terreno pode lhe consumir calorias necessárias. Arrependeu-se por um instante de não ter providenciado um bastão de caminhada, um pedaço de pau para apoiar-se, e logo descartou o pensamento. Não há sentido em desprender tempo e energia com decisões já tomadas e executadas. É sempre tarde demais, de qualquer forma.

Chegando ao topo da colina permitiu-se uma longa pausa para avaliar o que se revelou adiante. Retira os óculos de lente escura e aro grosso que usa e observa o que vê ao seu redor.

À esquerda a colina se estende por alguns metros até ser brutalmente interrompida por uma cratera enorme. Já viu muitas dessas, sabe que não vale a pena investigar. Que tipo de explosão a teria criado ele já desistiu de imaginar a muitos anos.

À direita a colina desce, mostrando o mesmo padrão de ruínas que observou ao longo do caminho. Restos de paredes de alvenaria e madeira, cercados de mato alto e árvores de pequeno porte aqui e ali. Instintivamente procurou ninhos de aves nas copas, mas não viu nenhum. 

Mas à sua frente as ruínas cresciam e tomavam contornos mais animadores. Ruas eram claramente perceptíveis cortando caminho entre construções desabadas ou parcialmente tombadas, sugerindo algum sentido em meio ao caos. Curiosamente este sentido agride profundamente o caos que reina no resto do ambiente.

Seguindo os riscos negros e largos de asfalto no chão, encontrou cruzamentos, e pilhas de metal enferrujado que concluiu terem sido carros. No horizonte, linhas verticais brotam do chão riscando o céu e crescendo de forma imponente onde não deveria existir nada. Nunca viu nada maior do que uma casa de dois pavimentos. Foi o primeiro prédio em pé que se lembrou de ver em sua vida. Um não, vários. Estava em uma cidade.

Com o olhar perdido nas as silhuetas estranhamente retas percebe que o sol vai baixo e que seu tempo se esgota. Abrigo, precisa encontrar abrigo. Aquecer-se e esperar pelo amanhecer.