Pripyat, Ucrânia - Foto: Augusto Sala |
#1
À esquerda a colina se estende por alguns metros até ser brutalmente interrompida por uma cratera enorme. Já viu muitas dessas, sabe que não vale a pena investigar. Que tipo de explosão a teria criado ele já desistiu de imaginar a muitos anos.
Um homem caminha por entre folhagens altas. Sob seus pés, um terreno
relativamente regular formado por um piso de concreto, com rachaduras aqui e
ali de onde brota um mato pouco denso, oferece a possibilidade de avanço fácil.
Mas a oferta não é aceita e o homem arrasta os pés, um atrás do outro, como se
fossem lastros amarrados às extremidades das pernas. É evidente que não existe
um destino claro em sua mente.
Sua respiração, lenta, cadenciada e profunda, faz soar um sibilo
característico de doença. Qual ele não sabe precisar. A dor, sempre presente,
já foi ignorada faz bastante tempo. De forma que aprendeu a conviver com ela
como quem sempre conviveu com a fome, a falta de banho ou o sono assustadiço.
À esquerda e à direita acumulam-se restos de paredes. É um bom indício. Faz
alguns dias desde que viu alguma construção e embora as matas ofereçam melhores
possibilidades de encontrar água e algo para mastigar, são úmidas e se dorme desabrigado,
ao sabor do vento, do frio e principalmente da chuva. É preciso procurar um
lugar melhor antes que a desgraçada volte e o chiado no seu peito piore.
Ao contrário de outros poucos que viu por aí, o último já a muitas
mudanças da lua, ele não empurra um carrinho cheio de tralhas, água ou comida.
Percebeu com alguma facilidade que isso o deixaria lento e o faria uma presa
fácil para os mais fortes, rápidos ou saudáveis. Não. Seus pertences são muito
poucos, todos carregados junto ao corpo.
Fazendo um esforço para manter sua concentração, tateou por sob a barba
comprida e precocemente grisalha à procura do seu bem mais precioso: a faca que
traz em uma bainha de couro, pendurada no pescoço. Toca-lhe o cabo e lembra-se
de seu objetivo. Precisa encontrar abrigo, rapidamente.
Olhando para frente, firma o passo deixando para trás o caminhar arrastado
e incerto do homem que há alguns instantes parecia completamente perdido.
Inclinando ligeiramente o corpo para frente, a fim de adequar seu equilíbrio à
mudança de inclinação do terreno na medida em que este se torna íngreme, mantém
o ritmo das passadas, agora muito mais firmes. É necessário economizar energia
e ele sabe que caminhar grandes distâncias sem se adequar às características do
terreno pode lhe consumir calorias necessárias. Arrependeu-se por um instante
de não ter providenciado um bastão de caminhada, um pedaço de pau para
apoiar-se, e logo descartou o pensamento. Não há sentido em desprender tempo e
energia com decisões já tomadas e executadas. É sempre tarde demais, de
qualquer forma.
Chegando ao topo da colina permitiu-se uma longa pausa para avaliar o
que se revelou adiante. Retira os óculos de lente escura e aro grosso que usa e
observa o que vê ao seu redor.
À esquerda a colina se estende por alguns metros até ser brutalmente interrompida por uma cratera enorme. Já viu muitas dessas, sabe que não vale a pena investigar. Que tipo de explosão a teria criado ele já desistiu de imaginar a muitos anos.
À direita a colina desce, mostrando o mesmo padrão de ruínas que
observou ao longo do caminho. Restos de paredes de alvenaria e madeira,
cercados de mato alto e árvores de pequeno porte aqui e ali. Instintivamente
procurou ninhos de aves nas copas, mas não viu nenhum.
Mas à sua frente as ruínas cresciam e tomavam contornos mais animadores.
Ruas eram claramente perceptíveis cortando caminho entre construções desabadas
ou parcialmente tombadas, sugerindo algum sentido em meio ao caos. Curiosamente
este sentido agride profundamente o caos que reina no resto do ambiente.
Seguindo os riscos negros e largos de asfalto no chão, encontrou
cruzamentos, e pilhas de metal enferrujado que concluiu terem sido carros. No
horizonte, linhas verticais brotam do chão riscando o céu e crescendo de forma
imponente onde não deveria existir nada. Nunca viu nada maior do que uma casa
de dois pavimentos. Foi o primeiro prédio em pé que se lembrou de ver em sua
vida. Um não, vários. Estava em uma cidade.
Com o olhar perdido nas as silhuetas estranhamente retas percebe que o
sol vai baixo e que seu tempo se esgota. Abrigo, precisa encontrar abrigo.
Aquecer-se e esperar pelo amanhecer.
Uau, that's some well written stuff.
ResponderExcluirVale a pena a leitura. O texto flui naturalmente. Muito bom.
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